Clarice Lispector


Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.
Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.



A Perfeição

O que me tranqüiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição. 



Meu Deus, me dê a Coragem

     Meu Deus, me dê a coragem
     de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
     todos vazios de Tua presença.
     Me dê a coragem de considerar esse vazio
     como uma plenitude.
     Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
     entrelaçada a Ti em êxtase.
     Faça com que eu possa falar
     com este vazio tremendo
     e receber como resposta
     o amor materno que nutre e embala.
     Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
     sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
     Faça com que a solidão não me destrua.
     Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
     Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
     Faça com que eu saiba ficar com o nada
     e mesmo assim me sentir
     como se estivesse plena de tudo.
     Receba em teus braços
     o meu pecado de pensar. 



A Lucidez Perigosa

Estou sentindo uma clareza tão grande
     que me anula como pessoa atual e comum:
     é uma lucidez vazia, como explicar?
     assim como um cálculo matemático perfeito
     do qual, no entanto, não se precise.

     Estou por assim dizer
     vendo claramente o vazio.
     E nem entendo aquilo que entendo:
     pois estou infinitamente maior que eu mesma,
     e não me alcanço.
     Além do que:
     que faço dessa lucidez?
     Sei também que esta minha lucidez
     pode-se tornar o inferno humano
     - já  me aconteceu antes.

     Pois sei que
     - em termos de nossa diária
     e permanente acomodação
     resignada à irrealidade  -
     essa clareza de realidade
     é um risco.

     Apagai, pois, minha flama, Deus,
     porque ela não me serve
     para viver os dias.
     Ajudai-me a de novo consistir
     dos modos possíveis.
     Eu consisto,
     eu consisto,
     amém.



Estrela Perigosa
 

      Estrela perigosa
       Rosto ao vento
       Marulho e silêncio
       leve porcelana
       templo submerso
       trigo e vinho
       tristeza de coisa vivida
       árvores já floresceram
       o sal trazido pelo vento
       conhecimento por encantação
       esqueleto de idéias
       ora pro nobis
       Decompor a luz
       mistério de estrelas
       paixão pela exatidão
       caça aos vagalumes.
       Vagalume é como orvalho
       Diálogos que disfarçam conflitos por explodir
       Ela pode ser venenosa como às vezes o cogumelo é.

       No obscuro erotismo de vida cheia
       nodosas raízes.
       Missa negra, feiticeiros.
       Na proximidade de fontes,
       lagos e cachoeiras
       braços e pernas e olhos,
       todos mortos se misturam e clamam por vida.
       Sinto a falta dele
       como se me faltasse um dente na frente:
       excrucitante.
       Que medo alegre,
       o de te esperar. 



Quero Escrever o Borrão Vermelho de Sangue

     Quero escrever o borrão vermelho de sangue
     com as gotas e coágulos pingando
     de dentro para dentro.
     Quero escrever amarelo-ouro
     com raios de translucidez.
     Que não me entendam
     pouco-se-me-dá.
     Nada tenho a perder.
     Jogo tudo na violência
     que sempre me povoou,
     o grito áspero e agudo e prolongado,
     o grito que eu,
     por falso respeito humano,
     não dei.

     Mas aqui vai o meu berro
     me rasgando as profundas entranhas
     de onde brota o estertor ambicionado.
     Quero abarcar o mundo
     com o terremoto causado pelo grito.
     O clímax de minha vida será a morte.

     Quero escrever noções
     sem o uso abusivo da palavra.
     Só me resta ficar nua:
     nada tenho mais a perder.
 
 
 
 
 

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