Estimulando o pensamento crítico na sala de aula
Rosemary Soffner
Quando recebi a solitação de apresentar algumas reflexões
sobre o tema "Estimulando o Pensamento Crítico na sala de aula" optei
começar nossa conversa explicitando os termos que a intitulam. Pode
parecer excesso de zelo querer clarear palavras tão usuais para educadores,
mas é impossível não lembrar de duas pessoas (Prof.
Joel Martins e Prof. Paulo Freire) quando afirmamos que é necessário
falar do que é óbvio, porque, as vezes, por ser óbvio
deixa de ficar claro ou tão claro quanto desejamos.
Para Descartes, pensamento "engloba os fenômenos do espírito.
O que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida,que entende,
que concebe, que afirma, que quer, que não quer, que imagina e que
sente. Este sentido perdeu atualidade mesmo em Descartes. Mais comumente,
diz-se de todos os fenômenos cognitivos (em oposição
aos sentimentos e às volições). Pensamento é,
então, um sinônimo de inteligência. 1 Num sentido bastante
mais amplo, pensamento seria tudo aquilo que tem em si um caráter
de racionalidade e de inteligibilidade, mesmo sem consciências atual,
mas com uma tendência para a consciência." 2
"Crítico: aquele que não aceita nenhuma asserção
sem se interrogar primeiro sobre o valor dessa asserção, tanto
do ponto de vista do seu conteúdo (crítica interna) quando
do ponto de vista da sua origem (crítica externa"). 3
Nesse momento nos parece importante também definir "estímulos".
Segundo Lalande (1993) , estímulo é qualquer ação
física que põe em ação as reações
de um ser vivo.
Sendo assim, "Estimulando o Pensamento Crítico na Sala de Aula" significa
alguém agindo para que outras pessoas atuem de forma inteligente e
interrogativa.
Estimular o pensamento crítico me parece ser a missão de todo
Ser Humano no seu ser-com-o-outro, do ser-no-mundo. O que desperta a minha
atenção, nesse momento, é circunscrever essa colocação
fazendo uma breve revisão do que acontece, na maioria das vezes, dentro
da "sala de aula".
A educação
Os modelos de ensino mais tradicionais 4 trabalham, basicamente, com a transmissão
de informação. O professor veicula informações
e o aluno as recebe. A memorização é privilegiada no
sentido que permite ao aluno "devolver", quando solicitado, as informações
transmitidas. Quanto mais precisa e fiel for essa "devolução"
melhor, pois ela é um indicador da eficiência do ensino. Nesse
panorama, a escola tradicional enfatiza o ensino e não o aprender.
Para nos certificarmos da veracidade dessas informações bata
analisarmos, as provas que são dadas nas nossas escolas e só
para citar mais um exemplo lembraremos do Exame Vestibular. O aluno, normalmente,
é avaliado pela quantidade de informações que conseguiu
"reter".
Parece que não há muita discordância de que é
essa a forma como se dá a educação, na quase totalidade
dos casos. Mesmo que em alguns momentos assumamos outros discursos, na prática
temos uma educação transmissivista. Tal modelo teve um papel
e uma origem que se contextualizadas nos permite verificar uma função
e necessidade histórica – a reprodução do conhecimento.
Mas o que é saber? Muitos estudiosos já o definiram, apresentaremos
as palavras do professor Larsen (1998) que "destaca a importância de
se diferenciar informação de conhecimento. o conhecimento é
representação interna (subjetiva) da informação.
Informação é "forma de mediação dos conhecimentos
socialmente compartilhados"(Barato, 1994). Para que haja saber precisamos
acrescentar o desempenho ou ação humana (a interação
entre o sujeito conhecedor e o contexto de aplicação do conhecimento.
O saber, além de acesso a informação exige a construção
de representações internas (conhecimento) e uma prática
(desempenho) que molda continuamente o conhecimento). 5
A partir das colocações feitas podemos concluir que o simples
acesso a informação, não pressupõe nem a construção
do conhecimento e nem o saber.
Portanto, os modelos educacionais tradicionais e vigentes não estão
organizados sistematicamente para a elaboração do saber e sim
para transmissão de informação. O foco central de ais
modelos tradicionais não é o aprender mas, o ensinar.
O Mundo Moderno e a Sociedade do Século XXI
Estamos vivendo uma revolução científico-tecnológica,
que se deve, entre outras coisas, ao desenvolvimento da microeletrônica,
que vem alterando, significativamente, as condições de vida,
produção e prestação de serviços. Estas
modificações, por sua vez, exigem que as relações
sociais se estabeleçam sob outros paradigmas.
As alterações mais fáceis de serem notadas estão
relacionadas às desencadeadas pela informática, a tal ponto
que nos referimos a nossa era como sendo a "era da informaçõa".
De uma forma ou de outra, a informática se faz presente nas nossas
vidas cotidianas, mesmo que na maioria das vezes não tenhamos clareza
disso. Quando usamos os serviços bancários, "caixas eletrônicos",
aparelhos eletrodomésticos e serviços de comunicação,
só para citar alguns exemplos, estamos nos valendo dos avanços
tecnológicos. Nas situações citadas, não questionamos
as contribuições e facilidades oferecidas pelo processo de
informatização e, geralmente, só nos damos conta da
sua presença quando ela se mostra ausente ou "falha". Como diria Martin
Heidegger, ela se faz presente pela ausência.
Hoje, a quantidade de informação produzida é tão
grande que é impossível o acesso a todas, mesmo em se tratando
de temas extremamente especializados. Com a agilidade e rapidez das novas
descobertas, o que era a última palavra num determinado campo do conhecimento
deixa de ser verdade dentro de instantes (como exemplo podemos citar as descobertas
de algumas drogas medicamentosas). Sendo assim, a memorizaçãode
fatos e dados já não pode ser o diferencial entre o "sábio"e
o "ignorante".
Os referidos avanços tecnológicos podem gerar diferentes consequências.
Os mais otimistas acreditam que o ser humano ficará livre de tarefas
mecânicas, elas serão realizadas pelas máquinas. Homens
e mulheres se dedicarão a atividades mais inteligentes que exigem,
portanto, uma capacidade diferente da repetir informações ou
cumprir ordens. Os pessimistas temem uma desumanização restritas
das possibilidades de trabalho, ficando o homem cada vez mais submisso as
máquinas, tornando-se uma simples peça de uma engreganem de
proporções inimagináveis. Acreditamos que haja alguns
caminhos para se evitar que o prognóstico desfavorável se realize:
as pessoas precisam estar preparadas para tomar decisões, devem ser
capazes de aprender com automonia, distanciamento e pensamento crítico.
A "era da informação" e a organização social
que ela desencadeia é que nos faz vislumbrar esse caminho.
A Escola e o Pensamento Crítico
Ao consideramos a organização educacional segundo as características
descritas anteriormente e as definições dos termos: "pensamento"
– "crítico", somos levados a concluir que, hoje, o pensamento crítico
(atuar de forma inteligente e interrogativa frente as asserções
ou informações), nas escolas, não é estimulado
e se ocorre é quase a revelia dos processos de ensino.
Pode parecer bastante severa essa conclusão e para alguns pode ser
até ofensiva. No entanto, uma análise desapaixonada poderá
confirmá-la.
Por uma questão de tempo, não será possível um
trabalho mais profundo para a análise proposta. Mas, é fundamental
que alguns pontos, para futuras reflexões sejam apresentados e comentados.
O primeiro deles é a questão da memorização.
Como já dissemos o ensino tradiconal se sustenta e é sustentado
na memorização de fatos. Penso que todos concordamos que esse
processo mental não desenvolve compreensão, análise,
síntese, construção do conhecimento, transferência
de conhecimento e nem um bom desempenho em alguma atividade. Apesar de ser
necessário para todas as habilidades citadas, ela em si não
as garante. Sendo assim, um processo educacional que privilegia quase que
exclusivamente o "decorar a matéria" não pode estimular o pensamento
crítico. Quando a verificação do saber se resume em
repetir as informações ouvidas ou lidas estamos educando para
a ausência de crítica (acriticidade). Estamos deseducando, pois
o ser- humano é naturalmente crítico, basta lembrar-mos das
perguntas mais ingênuas das crianças que em todas as situações
querem saber os "porques". Mas, quando entram na escola aprendem a não
questionar mas, a obedecer.
Quando desejamos que alguem memorize alguma coisa ou que obedeça incondicionalmente
é porque acreditamos que existe verdades absolutas, inquestionáveis.
Poder criticar, poder pensar, poder questionar implica em considerar a transitoriedade
das verdades. Algo nem sempre muito confortável.
Penso, ainda, que a tarefa de estimular o pensamento crítico não
está limitada aos muros da escola. Que é uma atribuição
do ser-com-os outros. No entanto, a ênfase que está sendo dada
ao ambiente educacional deve-se primeiro ao contexto da nossa conversa e
segundo ao fato de ser a escola o espaço, dentro da nossa sociedade,
organizado sistemática e intencionalmente para o aprender (pelos menos,
assim desejamos).
Os princípios do modelo educacional tradicional estão relacionadas
com momentos históricos específicos, necessidades culturais,
sociais e ecônomicas, entre outros fatores determinantes. Pressupõem
certas visões de mundo, de homen e de sociedade. Mas, para o momento
histórico que estamos vivendo, tais concepções não
são adequadas. A simples reprodução do conhecimento
não será suficiente para vivermos com dignidade, sem nos imbecializarmos
frente as máquinas. Então, nos resta uma pergunta, porque persiste?
Uma das respostas possíveis deve-se ao fato das dificuldades inerentes
a todo e qualquer processo de mudança. É muito mais fácil
continuar fazendo o que se faz há décadas do que encarar novos
desafios, do que ousar. Por outro lado, existe toda uma estrutura educacinal
em termos de metodologias, livros, estratégias, políticas de
formação de professores etc. que garante de uma forma ou de
outra a continuidade ou a manutenção do status quo. Além
disso, ainda existe na sociedade setores que pensam que para defender seus
interesses é preciso ter pessoas cumpridoras de ordem, sem pensamento
crítico, sem autonomia.
Retomando a questão da dificuldade, temos que salientar que qualquer
processo ou relação que se estabeleça no sentido de
se trabalhar com pessoas com senso crítico apurado é muito
mais desgastante. Não é por outra razão que muitas vezes
a palavra "crítica" é usada com um sentido negativo. Por exemplo,
diz-se que uma situação é crítica quando ela
carrega ou representa gravidade. Quando nos referimos a alguém como
sendo uma "pessoa crítica" há uma tendência a se pensar
que se trata de alguém de convívio desegradável e as
vezes pertubador da ordem estabelecida. Essas colocações podem
ser, tranqüilamente, transferidas para a avaliação do
comportamento dos alunos. O aluno dócil, não questionador,
obediente é o tipo mais desejado. Aquele que pensa, indaga, questiona,
duvida, geralmente, não é visto com bons olhos pelo corpo docente
e técnico das escolas. Talvez trabalhar com a criticidade seja tão
difícil quanto admitir a ausência de verdades eternas.
Porque então estimular o pensamento crítico?
Uma das respostas a essa indagação surge a partir da própria
pergunta. Se a preocupação se faz presente é porque
existe um espaço, no mínimo, de questionamento e reflexão.
Além do espaço, e muito mais importante que ele, a atenção
que se está dando, em termos mundiais, ao pensamento crítico
nos diz do espíriro do tempo, nos fala de características próprias
do momento históricoque estamos vivendo. Não é nenhuma
invenção de um grupo intelectuais ou políticos.
O que fazer? Como fazer?
Falamos que existe toda uma estrutura em termos de metodologias, estratégias,
livros, etc. que sustentam abordagens de ensino baseadas na memorização.
Uma das ações possíveis para aqueles que acreditam e
desejam disseminar idéias e ver, de fato, o pensamento crítico
sendo estimulado nas salas de aula é começar a fornecer subsídios
para os educadores que querem embarcar na deliciosa aventura de ousar a mudar
o estabelecido. Tais subsídios podem assumir formas de reuniões,
cursos, indicação de bibliografia, propostas metodológicas
etc.
Nesse sentido queremos salientar o uso da informática enquanto recurso
instrucional. Antes, de mais nada é preciso deixar claro que a simples
presença de um computador na sala de aula não muda a concepção
de ensino. É preciso saber o que se quer e como a informática,
enquanto ferramenta, pode nos auxiliar no cumprimento de nossos objetivos.
Na tentativa de deixar mais claro algumas das possibilidades do uso do computador
em situações de aprendizagem que valorizem a construção
do conhecimento – condição sine qua non – para o pensamento
crítico, a seguir, citaremos alguns exemplos.
Uma das maneiras de se favorecer a construção do conhecimento
é oferecer oportunidades de experimentação. Atualmente,
vários argumentos são apresentados como impedimentos para a
realização de experiências, como por exemplo: custos
de materiais, falta de laboratórios, inabilidade dos alunos para a
manipulação de alguns materiais. Tais argumentos são
usados, muitas vezes, no sentido de justificar um ensino baseado no discurso
e na memorização.
Umas das grandes contribuições que os computadores podem oferecer
é a simulação de problemas reais. Citaremos alguns exemplos
dessa possibilidade nas áreas de físico- química, biologia
e "ciências sociais", com a intenção de, ao menos, servir
como ponto de partida para uma reflexão e, talvez, para servir de
estímulo desencadeante de mudanças.
Experiências de físico-química que oferecem perigo de
vida a todos os presentes, se realizadas em laboratórios convencionais,
podem ser realizadas em computador, sem nenhum tipo de risco. Se as explosões
ocorrerem além de não significarem nenhum perigo podem ser
benvindas na testagem de hipóteses e se considerarmos que aprendemos
a partir de nossos erros. As leis da física passariam a ser "vividas"
e poderiam ser descobertas através das experimentações
e não simplesmente memorizadas.
As pesquisas e experiências que necessitam de materiais caros, quase
nunca são realizadas e se o são, acontecem com sérias
restrições em função do alto custo que isso apresenta
para as escolas. No entanto, se as referidas experiências fossem executadas
através de softwares elas poderiam ser repetidas inúmeras vezes
com custo zero. Nesse caso, a questão financeira deixaria se ser um
impedimento na criação de ambientes e oportunidades de experimentação
por parte dos alunos. Mesmo considerando que poderemos encontrar um contra-argumento
referente aos gastos com a compra de computadores, uma análise mais
apurada nos mostrará que tais custos se diluem ao longo do tempo.
Outra categoria de atividade que é beneficiada e viabilizada com o
uso da informática é a que contempla situações
que necessitam de precisão experimental, algo nem sempre fácil
de ser obtido ora por falta de materiais adequados ou em boas condições,
ora por inabilidade do aluno nos diferentes estágios de aprendizagem.
Lembraremos, ainda as situações que não podem ser manipuladas
no mundo real e que a partir de uma simulação computacional
poderia ser de grande valor na construção do conhecimento.
Por exemplo, como podemos testar a melhor via de entrada para uma determinada
colonia de microorganismos invadir um hospedeiro com algumas características
mais específicas? E se alterássemos algumas dessas características?
Estas Ações passam a ser "reais" com o auxilio de um computador,
contribuem para estabelecimento de relações, trabalha com a
idéia de variáveis dependentes e independentes, entre outras
habilidades intelectuais.
Para encerrar a apresentação de exemplos, sem a pretensão
de ter esgotado as possibilidades de uso de informática em educação
falaremos de algumas situações que podem ser exploradas através
das simulações. Pensemos num jogo onde um grupo de pessoas
representam um único personagem que em diferentes momentos e frente
a uma diversidade de situações deve tomar decisões.
Cada decisão tem uma consequência que gera uma nova situação.
Por exemplo, podemos representar o papel de um secretária de saúde
que está enfrentando problemas em relação a algum tipo
de epidemia que ameaça se instalar. Temos vacinas? São suficientes?
Dispomos da quantidade suficiente? E os interesses políticos e econômicos
? Há ainda a pressão da imprensa? E assim por diante.Num modelo
como este a aprendizagem coletiva pode se fazer presente de forma marcante.
Os alunos poderão trabalhar com aspectos sociais que até agora
só se apresentam de forma descritiva em alguns materiais escritos.
É possível integrar conhecimentos de diversas áreas.
Além de se tratar de um ambiente bastante rico e lúdico o processo
de tomada de decisão envolve habilidades como análise, estabelecimento
de objetivos, busca de informações, tranferência de conhecimento
e a capacidade de assumir as consequências da escolha feita. Tais habilidades
são imprescendiveis no desenvolvimento do pensamento crítico.
Os exemplos que citamos sobre o uso de informática na educação
oferecem uma possibilidade de ambientes favoráveis à construção
de conhecimento, ao aprender a aprender e ao pensamento crítico. Uma
vez que, segundo o professor Steen Larsen, esse tipo de pensamento só
é possível quando os alunos podem não só manipular
situações concretas mas, principalmente, re-interpretá-las,
re-encená-las, para si e para os outros.
Notas:
Inteligências: conjunto de todas as funções que têm
por objetivo o conhecimento no sentido mais amplo da palavra (sensação,
associação, memória, imaginação, entendimento,
razão consciência).
Lalante, André – Vocabulário técnico e Crítico
da Filosofia – Ed. Martins Fontes – SP, 1993.
Idem.
O adjetivo "tradicional", nesse caso, não se refere a antigo, mas
a um modelo educacional.
Barato, Jarbas Novelino (1994) Aqui agora: novas tecnologias e ensino municipal.
Rosemary Soffner (rsoffner@opus.com.br) é Doutoranda na ECA-USP, Mestre
em Psicologia da Educação PUC-SP, Diretora Pedagógica
da Re-Criar Assessoria e Desenvolvimento em Tecnologia Educacional, Diretora
da Sucesu-SP, Assessora de Tecnologia Educacional em escolas e instituições
de ensino.
Origem deste material: http://www.divertire.com.br/