Realidade virtual e aprendizagem humana
 
Alguns aspectos a considerar no projeto e implementação de
sistemas de realidade virtual no contexto educacional

Sumário
 

Introdução
A  Realidade Virtual no contexto educacional
3  Criando ambientes virtuais: alguns aspectos a considerar
    3.1     Aspectos teóricos sobre a aprendizagem humana
    3.2     Aspectos tecnológicos dos sistemas de realidade virtual
4   Conclusões
5   Bibliografia


(fonte: [Damer98])


1    Introdução

                Grande parte dos mudanças na práxis pedagógica que estão ocorrendo atualmente, são devidos, certamente,  a novas  tecnologias. Estas novas tecnologias tem colocado a disposição do educadores inúmeras e poderosas formas de apoio à aprendizagem humana. Entre estas novas tecnologias está a realidade virtual. O uso desta emergente e promissora tecnologia, que faz parte dos chamados Sistemas de Realidade Virtual  (os SRVs),  vem se difundindo de forma muito rápida na educação. Entretanto, como qualquer tecnologia, para que seu uso seja feito de forma correta  no contexto educacional, seu projeto deve estar fortemente embasado em presupostos teóricos e comprovados sobre como o homem aprende. Sem este cuidado, certamente teremos mais uma parafernália inútil e descartável, no rol de tantas outras já criadas e esquecidas.

                Assim, o projeto e implementação dos chamados ambientes virtuais, nos quais se inserem os Sistemas de Realidade Virtual, para aplicação no contexto educativo. deve levar em conta não somente os aspectos tecnológicos mas tambem, e principalmente, os aspectos cognitivos e afetivos do desenvolvimento intelectual, ou seja, é necessário que as decisões de projeto, implementação e uso destes ambientes apoiem-se no entendimento de  como o indivíduo constroi o conhecimento, bem como ocorre a aprendizagem humana.

3    A  Realidade Virtual no contexto educacional

                Os SRV estão causando, sem sombra de dúvida, uma enorme (r)evolução no processo educacional. Como um ambiente de apoio à aprendizagem, os mundos virtuais, onde o sujeito possa se movimentar, ouvir, ver e manipular objetos, como no mundo real, certamente representam efetivas oportunidades à disposição dos educadores. A introdução dos SRVs na educação modificará significativamente o  papel destes educadores, sendo-lhes exigido novas competências. É necessário que eles se sintam motivados a recorrer ao uso desta nova tecnologia.
                O quadro abaixo apresenta algumas áreas potenciais onde os benefícios educacionais podem ser esperados:
 
Uso potencial
Benefícios comparados com os métodos tradicionais
Simulação de sistemas complexos Habilidade para observar a operação do sistema a partir de um número de perspectivas aliada a uma alta qualidade de visualização e interação
Visualização macroscópica e microscópica Observação de propriedades de objetos, que são muito grandes ou muito pequenos para serem observados em escala normal
Simulação em tempos mais rápidos ou mais lentos Habilidade para controlar a escala de tempo em um evento dinâmico. Esta facilidade pode operar como no avanço ou retrocesso  rápido dos gravadores de vídeo modernos.
Permite altos níveis de interatividade Os SRVs permitem um grau maior de interatividade que outros sistemas baseados em computador
Sensão de imersão Em algumas aplicações, a sensação de escala é extremamamente importante
Flexibilidade e adaptabilidade Um mesmo SRV pode ser alocado à diversos usos
 
                Entretanto, existe uma enorme dificuldade na sua efetiva utilização na educação à distância. A disponibilização dos SRVs,  na educação à distância é ainda uma promessa. e isto se deve, essencialmente as dificuldades tecnológicas e à inexistência de ambientes de testagem que validem os fundamentos teóricos da aprendizagem humana, utilizados no projeto e implementação destes ambientes.
                Os recursos para criar-se ambientes virtuais de testagem são normalmente consideráveis. Na educação à distância estas dificuldades são maiores ainda, principalmente devido as limitações atuais nos sistemas de comunicação de dados. Contudo, devem ser promovidos a criação de ambientes para aplicação nesta área, pois o seu uso, ao permitir a experimentação de novas realidades, muito próximas do mundo real, irão se constituir locais de pesquisa e investigação, que proporcionarão ao aprendiz inúmeras oportunidades de fazer e compreender.
 

3    Criando ambientes virtuais: alguns aspectos a considerar

 3.1    Aspectos teóricos sobre a aprendizagem humana

                 Educar não é apenas transmitir conhecimento; educar abrange uma atuação muito mais ampla; e educar está estritamente relacionado com aprendizagem.   O termo aprendizagem, no entanto, não tem um significado que só admite uma interpretação: seu conceito depende  das características que cada teoria lhe atribui. Entretanto, todas as teorias de aprendizagem dependem, por sua vez, das concepções sobre a natureza do conhecimento e das hipóteses sobre o desenvolvimento intelectual.
                As teorias de Jean Piaget e seus colaboradores, sobre a gênese dos conhecimentos, formam um conjunto que Battro, apud [Minguet98] qualifica como "Sistema Piagetiano". Um dos pilares deste "sistema'" chama-se Teoria da Equilibração das Estruturas Cognitivas. A partir da ótica piagetiana, os conhecimentos não são simples produtos da aprendizagem, de condições inatas ou de processos linguísticos. Tais conhecimentos procedem de construções sucessivas com constantes elaborações de novas estruturas, e sua formação e desenvolvimento se explica a partir de um processo central de equilibração, que vai desde determinados estados de equilíbrio a outros qualitativamente diferentes, através de desequilíbrios e reequilibrações. Este processo (re)construtivo é empurrado pela busca de coerência à qual nenhum sujeito pode renunciar. Este "ímpeto" chama-se equilibração majorante.
                Outro pilar no sistema piagetiano está relacionado com a atividade do sujeito: o desenvolvimento cognitivo se faz, essencialmente, através da interação do sujeito e o mundo que o envolve, ou seja, dito de outra forma, "do ponto de vista interacionista, o conhecimento deve ser considerado como uma relação de interdependência entre o sujeito conhecedor e o objeto a ser conhecido"[Barbel77].  Segundo Piaget, o objeto do conhecimento não pode ser conhecido senão  por aproximações sucessivas através das atividades do sujeito, o que supõe um trabalho contínuo de elaboração e de descentração por parte do sujeito conhecedor.  Disso decorre, que uma situação de aprendizagem é mais produtiva quanto mais ativo é o sujeito.
                A chave da compreensão da aprendizagem é, como mostra Piaget, a ação.  Aquilo que, em uma ação, é transponível, generalizável ou diferenciável de uma situação à seguinte é chamado esquema de ação. Piaget define tambem esquemas como"unidades de comportamento suscetíveis de repetição mais ou menos estável e de aplicação a situações ou objetos diversos"[Piaget96] p. 266. A incorporação dos objetos aos esquemas de ações do sujeito, de maneira que um objeto é percebido e concebido em função das ações que o utilizam, é definido, no sistema piagetiano, como assimilação. A assimilação encontra-se presente na vida orgânica e em todos os estágios da vida psíquica ou mental.  A assimilação, cognitiva, implica em esquemas e é feita  sempre através de esquemas. Segundo Becker,  "é impossível tratar de aprendizagem sem tratar dos esquemas: os esquemas constituem a condição de possibilidade (condição necessária) de toda aprendizagem stricto sensu, e o processo de construção de novos esquemas e de sua coordenação é o próprio processo de equilibração, ou seja, o processo de aprendizagem lato sensu" [Becker93], p. 36.
 
                Piaget distingue três aspectos da assimilação:

                A interação entre o organismo e meio possui então, dois processos centrais, sendo um deles a assimilação e o outro a acomodação, que pode ser conceituada como a necessidade que existe na assimilação em dar conta das particularidades próprias dos elementos a assimilar. O conceito de acomodação não pode ser concebido sem o da assimilação e está intimamente ligado à equilibração.
                Para Piaget, todo novo conhecimento supõe uma abstração, e existem dois tipos de abstração, segundo suas fontes exógenas e endógenas:     Piaget tambem propõe os seguintes  componentes do processo da formação de conhecimentos, a saber:                 Como se pode ver, somente um componente é considerado por Piaget como aprendizagem stricto sensu. Só podemos falar em aprendizado na medida em o conhecimento é adquirido em função da experiência. Entretanto, nem todo resultado adquirido em função da experiência constitui aprendizado: não constituem aprendizagens as aquisições imediatas em função da experiência obtidas por indução.
                Becker diz, citando Piaget, que o que se aprende stricto sensu, "nada mais é do que o conjunto das diferenciações devidas à acomodação, fonte de novos esquemas em função da diversidade crescente dos contúdos. Em compensação, o que não é aprendido stricto sensu, é o funcionamento assimilador com suas experiências de equilíbrio entre a assimilação e a acomodação, fonte de coerência gradual dos esquemas e sua organização em formas equilibradas nas quais já discernimos o esboço das classes com suas inclusões, suas intersecções e seus agrupamentos como sistemas de conjunto. Mas, devido a essas interações entre a assimilação e a acomodação, a aprendizagem stricto sensu e a equilibração constituem esse processo funcional de conjunto que podemos chamar a aprendizagem lato sensu e que tende a se confundir com o desenvolvimento" [Becker93], p 25.
               De acordo com Piaget, o conhecimento não está no sujeito, nem tampouco no objeto. O conhecimento é construido na interação do sujeito com objeto. Sendo assim, a interação sujeito-objeto é um ponto importantíssimo a ser considerado no projeto de ambientes de apoio à aprendizagem. É na medida que o sujeito interage com o objeto do conhecimento, no sentido que age sobre o objeto e dele sofre a ação, produz-se aí sua capacidade de aprender, bem como o próprio conhecimento.  Entretanto, segundo Lanjonquière,  "o desenvolvimento cognitivo não pode ser acelerado à vontade ou, em outras palavras, (...) nada vale programar à maneira clássica sessões de aprendizagens com esta finalidade, já que, em particular os progressos, em geral, as vicitudes estão pautadas pelo ' tempo' da equilibração majorante. "[Lajonquière92], p. 89.
                O sujeito (re)constroi o conhecimento, na proporção de sua singularidade, o conhecimento socialmente compartilhado. Possivelmente, este (re)processamento produzirá um plus, uma novidade, que por sua vez será compartilhada socialmente, funcionando como um possível aberto a outros possíveis.  É neste sentido que, segundo Piaget, "...a sociedade é a unidade suprema, e o indivíduo só chega às suas invenções ou construções intelectuais na medida em que é sede de interações coletivas, cujo nível e valor dependem naturalmente da sociedade em conjunto. O grande homem que parece lançar novas correntes é apenas um ponto de intersecção ou de síntese de idéias elaboradas por cooperação contínua. Mesmo quando se opõe à opinião reinante, corresponde às necessidades subjacentes, que não tem origem nele". [Piaget96] p. 416
 
 
 3.2     Aspectos tecnológicos dos sistemas de realidade virtual
 
                Duas capacidades fundamentais foram definitivamente incorporadas aos ambientes virtuais projetados para uso na educação à distância:                 Os ambientes virtuais, através da imersão, seja ela parcial ou total, devem transmitir uma sensação de veracidade suficiente real para que a simulação funcione e o sujeito acredite. Esta capacidade, aliada a interatividade, proporcionará oportunidades para que o sujeito possa agir sobre objetos virtuais. Estes objetos, que representam simbólicamente objetos reais, podem ser manipulados pelo sujeito. Entretanto estes ambientes devem permitir interações de qualquer tipo, tanto aquelas ditas elementares, (que representam a relação entre os observáveis da ação do sujeito e os observáveis do objeto ao qual a ação diz respeito) como tambem aquelas nas quais participam tantos interações entre observáveis como entre coordenações. Um observável é o que a experiência permite notar por uma leitura imediata dos próprios fatos, enquanto que as coordenações são inferências, explícitas ou implícitas, que o sujeito realiza sobre os objetos. Estas situações concretas (mesmo que virtuais), devem levar ao fazer e compreender, onde "fazer é compreender em ação uma dada situação em grau suficiente para atingir os fins propostos e compreender é conseguir dominar, em pensamento, as mesmas situações até poder resolver os problemas por elas levantadas, em relação ao porque e ao como das ligações constatadas e, por outro lado, utilizados na ação" [Piaget78] p. 176.
 
                A outra capacidade implementada nos ambientes virtuais, a telepresença, via avatar, permitem aos estudante e professores atuarem e cooperarem, não através de si próprios mas, cada um deles, através de um personagem, o avatar. Desta forma, os participantes interagem entre si via os avatares. Alguns autores, entre eles Bruce Damer, não consideram os mundos virtuais como realidade virtual, já que as interações, se dão entre pessoas reais, mesmo que representadas pelos seus avatares. Estas comunidades de avatares representam, sem dúvida, a sociedade, onde o avatar é ponto de intersecção ou de síntese de idéias elaboradas por cooperação contínua.
 
                O projeto e implementação de mundos virtuais deve levar em conta as seguintes considerações:                 Estes ambientes, com suas comunidades virtuais devem ser projetados levando-se em conta tambem as limitações impostas pela largura de banda, latência e performance de renderização.
 

4   Conclusões

                Como vimos, os Sistemas de Realidade Virtual (SRV) representam um enorme potencial de aplicação em diversas área, sendo uma delas, a educação. O uso que se fará desta tecnologia dependerá da forma com que forem projetados e implementados, bem como do enganjamento de professores e alunos nestes verdadeiros mundos virtuais.
                Ao identificarmos alguns aspectos relacionados com estes ambientes, cremos ter  identificadas naqueles aspectos, sejam eles cognitivos ou tecnológicos, excelentes oportunidades para a pesquisa de fatores relacionados à aprendizagem humana, possibiltando a construção e o uso efetivo destes ambientes na formação do conhecimento.
 

5    Bibliografia
 
 
[Battro69] Battro, A. M, El pensamiento de Jean Piaget, Edic. M.C., Barcelona, 1969
[Barbel77] Barbel, I., Bover, M., Sinclair, H., Aprendizagem e estruturas do conhecimento, Edição Saraiva, 1977
[Becker93] Becker, F., Da ação à operação. O caminho da aprendizagem  em J. Piaget e P. Freire, Palmarinca, 1993
[Camacho96] Camacho, M. L. M., Realidade Virtual e Educação, 1996, http://penta2.ufrgs.br/projetos/upload/files/rved.htm
[Damer98] Damer, B., Avatars!, Exploring and Building Virtual Worlds on the Internet,  Peachpit Press, 1998
[Dede93] Dede, C., The Evolution of Constructivist Learning Environments: Immersion in Distribuited, Virtual Worlds, 1993
[Lajonquière92] Lajonquière, L., De Piaget a Freud. A (psico)pedagogia entre o conhecimento e o saber. Editora Vozes, 1992
[Minguet98] Minguet, P. A. (org), A construção do conhecimento na educação, ArtMed, 1998
[Montangero98] Montangero, J., Maurice-Naville, D., Piaget ou Inteligência em Evolução, Artmed, 1998
[Piaget77a] Piaget, P., A Tomada de Consciência, Edições Melhoramentos/Editora da Universidade de São Paulo, 1977
[Piaget77b] Piaget, P., O desenvolvimento do pensamento. Equilibração das Estruturas Cognitivas, Publicações Dom Quixote, 1977
[Piaget78] Piaget, P., Fazer e Compreender, Edições Melhoramentos/Editora da Universidade de São Paulo, 1978
Piaget96] Piaget, J., Biologia e Conhecimento, Editora Vozes, 2ª edição, 1996